O Mundo do Jazz, in O Mundo da Música, Leonard Bernstein

Creio que foi o José Duarte – e perdoe-me o José Duarte se estou errado - que contou a história que um dia, ainda jovem, quando lhe perguntaram a diferença entre o Jazz e as outras músicas, ele terá respondido que o Jazz era acentuado nos tempos fracos. Sabemos que esta perspectiva, puramente técnica, nunca terá sido a definição do José Duarte para o Jazz, mas a história tem alguma graça. E será claro que, mesmo do ponto de vista técnico, a acentuação não é a única singularidade do Jazz.

Mas a perspectiva técnica (musical) é a de inúmeros músicos «ortodoxos» (de que Rex Harris fala) e vale a pena considerá-la. Do Jazz falou Leonard Bernstein, o grande director de orquestra, compositor, educador, divulgador, mediático, popular também em Portugal, onde a série de «Concertos para Jovens» passou na televisão portuguesa ainda antes do 25 de Abril.

Não é um livro, mas um capítulo do livro de Bernstein, O Mundo da Música (original de 1953, tradução de Manuel Jorge Veloso para a Livros do Brasil). O livro em causa fala do Jazz no capítulo «O Mundo do Jazz», além de Beethoven, Bach ou a ópera, entre outros, e começa com três curiosas «conversações imaginárias», onde dialoga coloquialmente sobre música sinfónica ou Gershwin.

Logo na introdução, Bernstein esclarece as suas intenções: «Assim, ao explicar o Jazz, tenho evitado as habituais divagações pseudo-históricas (rio-acima-desde-Nova-Orleães) e procurado concentrar-me naqueles aspectos de melodia, harmonia, ritmo, etc., que tornam o Jazz diferente de toda a música». Descartada a História, é a perspectiva técnica-musical que lhe interessa, portanto e, muito ao seu estilo de comunicador, o livro é profusamente ilustrado com exemplos de imagens e partituras, evocando a lição de música a que corresponde esse e os outros capítulos, com intervenções de piano por ele próprio, da orquestra ou de um ou outro solista.

«Jazz é uma palavra com diversos significados e refere-se a uma grande variedade de estilos, desde os primitivos Blues ao Dixieland, ao Charleston, ao Swing, ao Boogie-Woogie, ao Bop, ao Cool, ao Mambo – e muitos outros» (e, enfim, a sua abrangência deverá desde logo aqui ser questionada), observando mais à frente como o Jazz é uma arte «de instrumentistas»: «(o) Jazz … é, quase por completo, uma arte de instrumentistas dependendo, como depende, da improvisação, mais do que da composição», seguindo-se: «Mas o mais importante é que o instrumentista, no Jazz, é ele próprio o verdadeiro compositor, o que lhe confere uma qualidade mais criadora, portanto, mais dignificante».

Definindo o Jazz como uma arte, o comunicador parte para a sua definição – «o que é o Jazz» -, começando com o elemento melodia, que define pelas escalas modificadas por blue notes – quer dizer, onde algumas notas são baixadas de meio tom, «bemolizadas»,- e a introdução de quartos de tom, com origem na música africana, que instrumentos de sopro ou de cordas podem produzir, mas que no piano apenas é possível «aproximar» tocando em simultâneo as duas notas bemol que os rodeiam.

Mais importante que a melodia no Jazz é o elemento ritmo, diz Bernstein; singularizado no Jazz pelo tempo e a introdução de síncopes provocadas pela deslocação da acentuação dos tempos fortes do compasso para os tempos fracos «onde ela não pertence», ou na eliminação de algumas acentuações nos tempos fortes.

O timbre é o terceiro elemento distintivo a considerar no Jazz, timbres diversos que contribuem para a individualidade ou personalidade do Jazz, e que têm quase todos origem «na imitação dos negros quando cantam», e que são os responsáveis pela «cor» no Jazz.

Enfim, sem mais delongas Bernstein acrescenta a forma e a melodia, apresentando o exemplo de um blues («My Man» por Billie Holiday), «definido por uma forma poética combinada com música», «uma copla ritmada com o primeiro verso repetido» e «uma sucessão de estâncias idênticas … com a duração que o cantor desejar», onde «a voz apenas canta durante metade de cada grupo de quatro compassos e a outra metade está reservada a ser preenchida pelo acompanhamento». E é nesse preenchimento, denominado break, que «encontramos a origem da imitação da voz pelos instrumentos, a própria raiz de que nasceu o Jazz».

(E enquanto o autor prossegue definindo o blues como uma forma clássica, Manuel Jorge Veloso anota que Bernstein se refere aos acordes tradicionais do blues, de que o Jazz se afastou na sua evolução moderna)

Clássica, canção popular (ou ligeira, na tradução), Bernstein acrescenta que a canção que agora toma como exemplo - «Sweet Sue» - «só se torna Jazz a partir do momento em que começa a improvisação sobre ela, a verdadeira alma do Jazz» e «É o instrumentista que, ao improvisar, constrói o Jazz, servindo-se da canção ligeira como uma espécie de manequim que ele “veste” com as suas próprias notas, à sua maneira, criando um original».

«O que quer dizer improvisação?» - prossegue. - «Quer dizer que um músico escolhe um tema, conserva-o na sua harmonia … e depois, como se costuma dizer, atira-se para a frente, vai resolvendo os problemas enquanto toca». E Bernstein conclui: «através de ornamentos, de figurações melódicas, criando novas melodias improvisadas, tal como Mozart e Beethoven fizeram… e se lhe pedíssemos para o fazer novamente, amanhã de manhã, teríamos uma versão completamente diferente. Mas continuaria a ser «Sweet Sue», continuaria a ser Jazz». E não esconde o entusiasmo perante «uma das facetas mais apaixonantes do Jazz… a improvisação colectiva»: «quando dois músicos improvisam simultaneamente sobre o mesmo tema», sem que nenhum saiba ao certo o que o outro vai tocar, «citam reciprocamente pequenas frases, parece que conversam juntos», ligados apenas pelos acordes de «Sweet Sue», duas linhas melódicas sobrepostas que resultam numa espécie de «contraponto acidental».

Considerando a evolução do Jazz (nos inícios dos anos 50, quando escreveu o livro), Bernstein nota que o Jazz já não era apenas a música de dança dos primórdios, mas sim uma música para se ouvir, tendo introduzida a escrita no que se chama um arranjo; sendo que, difícil de escrever, não existem processos de reproduzir exactamente em notação musical os quartos de tom ou os vários coloridos que descreve, e o «próprio ritmo apenas pode ser aproximado em notação musical», dependendo uma parte das características especiais do Jazz da intuição ou instinto do instrumentista, mas, «mesmo assim, a coisa resulta porque a intuição desses instrumentistas é profunda, é genuína». E de certa forma o Jazz «começou a transformar-se numa música de câmara – uma arte bastante elaborada, principalmente para ser escutada, cheia de influências de Bartok e de Strawinski e muito, muito séria»: Rex Harris e Hughes Panassié, tinham avisado (rimos nós).

Enfim o arranjo (um arranjo de «Sweet Sue» muito cool tocado pela orquestra) «transforma-se gradualmente numa composição», de forma a que, eliminado o ritmo, poderíamos ficar sem saber se é ou não Jazz – ainda Bernstein: «Poderia ser uma peça de concerto!». - Porque então lhe chamamos Jazz? - «Porque é tocada por músicos de Jazz, em instrumentos de Jazz e porque encontramos as suas raízes no Jazz e não em Bach». (Onde é que eu já li a definição de Jazz como a música que os músicos de Jazz tocam; ou a pescadinha de rabo na boca pelo mestre Leonard Bernstein há três quartos de século!). Tudo se tornou surpreendentemente intelectual e surpreendentemente controlado, se considerarmos que o Jazz é essencialmente uma «experiência emocional», que o público escuta com respeito e aplaude educadamente.

No (novo) Jazz está a verdadeira raiz da música séria americana, mesmo que muitas obras sinfónicas mais não sejam que imitações da tradição sinfónica europeia, mas, assegura Bernstein, «um certo elo de ligação entre a música séria e o Jazz se torna cada vez mais evidente». E se a controvérsia entre os tradicionalistas e os progressistas está acesa, «O Jazz é uma arte dinâmica e cheia de frescura, no presente, com um sólido passado e um apaixonante futuro».

Num capítulo apenas seria de qualquer forma em 1953 difícil encontrar uma definição de Jazz acabada como o maestro se propõe, e claramente o capítulo é apenas uma lição de Jazz para iniciados. Mas notamos que dizer que os blues, o dixieland, o charleston, o swing, o boogie-woogie, o bop, o cool e o mambo são estilos de Jazz parece-me no mínimo precipitado. O blues e o boogie-woogie são basicamente (do ponto de vista estritamente técnico) estilos para instrumentos (guitarra e voz, piano), o charleston pouco conterá de improvisação, etc. Um músico de Jazz toca blues, como toca valsas ou baladas, whatever, mas um músico de blues está prisioneiro da tradição. E um músico de charleston toca … charleston. Claro que há excepções e muitos músicos que na sua origem têm o mambo ou o blues revelam-se grandes músicos de Jazz; mas são-no porque em grande medida se libertaram das amarras dos seus géneros folclóricos, ou porque souberam integrar algumas características mais próprias desses géneros populares no Jazz. Mas, uma vez mais, é fácil observar isso hoje, passados três quartos de século.

Enfim, Bernstein mistura estilos populares e folclores ou prisioneiros de fórmulas, com o Jazz onde, já por essa altura, como ele admite mais à frente, «está a verdadeira raiz da música séria americana». Ou de outra forma, limitar o Jazz à definição técnica, na acentuação dos tempos fracos, das síncopes ou das blue notes, é pouco. Mas ele compreendeu bem como o Jazz é uma música de instrumentistas e de improvisadores e afinal, diria eu, a História também ajuda.

O Mundo do Jazz por Leonard Bernstein, ou o Jazz dissecado por um músico «ortodoxo». .